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Desde terça-feira, 3 de novembro, as eleições norte-americanas ocupam a cena política global. No sábado, com definição clara da contagem de votos em praticamente todos os estados, Joe Biden, do partido Democrata, foi declarado vitorioso, sendo o primeiro candidato a derrotar um presidente norte-americano em exercício nos últimos 25 anos. Sua vice, Kamala Harris, será, em breve, proclamada a primeira mulher e a primeira negra na vice-presidência dos Estados Unidos. A eleição entrará para a história do país pelo maior nível de engajamento popular já observado – uma consequência direta de medidas que expandiram as possibilidades de participação eleitoral por conta da pandemia, como a autorização de voto pelo correio e a extensão do período de abertura das urnas. O voto por correio já era permitido em muitos estados, mas nunca havia alcançado a escala deste ano.
Diferentemente de 2000, quando a vitória de George W. Bush sobre Al Gore dependeu exclusivamente do resultado da eleição na Flórida, Biden deve consolidar sua vitória no voto popular e no colégio eleitoral, com margem confortável. A recontagem na Geórgia, mesmo se redundar em vitória de Trump no estado, não será capaz de alterar o resultado geral da eleição. O sucesso democrata em estados nos quais Trump venceu em 2016, como Michigan, Wisconsin e, principalmente, Pensilvânia, foi fundamental para assegurar o resultado positivo para o candidato democrata. As ameaças lançadas por Trump não devem ter capacidade de alterar o resultado final.
No Senado, no entanto, o partido Republicano deve manter sua liderança e fará relativa resistência ao novo presidente. O controle republicano da casa dependerá, ainda, das eleições de segundo turno para as duas cadeiras senatoriais da Geórgia, que ocorrerão em janeiro. A câmara baixa (House of Representatives) segue sob controle Democrata, embora o partido tenha perdido algumas cadeiras. É importante ressalvar que não é incomum um presidente governar sem maioria no Congresso, situação conhecida por “governo dividido”. Obama e Trump, por exemplo, passaram parte de seus mandatos sem maioria em uma das duas casas congressuais, tendo ambos enfrentado negociações difíceis para a aprovação do orçamento federal ou de agendas menos consensuais.
Para além das instituições, entretanto, os resultados mostram um país dividido, com grau de polarização política e social superior àquele que é usualmente produzido em sistemas bipartidários. O cenário dos estados é indicativo de que o país vive um momento importante de transição social e demográfica. Biden recuperou estados na região dos Grandes Lagos, que por décadas formaram uma base sólida de apoio aos Democratas (Michigan, Wisconsin e Pensilvânia). Contudo, o desafio eleitoral imposto pela candidatura de Trump em 2016 está longe de ser superado. O apoio desses estados aos Democratas se baseava em uma classe média operária que hoje sofre com a decadência da economia industrial e tem manifestado comportamento eleitoral imprevisível. Ao mesmo tempo, estados da costa sudeste (Virgínia, Carolina do Norte, Geórgia) e do sudoeste (Arizona, Nevada, Texas) têm se inclinado para os Democratas em função da mobilização dos(as) negros(as), na primeira região, bem como da urbanização e da imigração latina, na segunda.
Com efeito, negros, mulheres e residentes de áreas fortemente urbanizadas garantiram vitória à Biden. Em todos os estados americanos, o democrata venceu entre os negros. Em apenas 12 dos 50, ele não foi vitorioso entre as mulheres. As grandes áreas urbanas no noroeste, no sudoeste e no nordeste votaram massivamente no partido Democrata. O restante do país declarou apoio a Trump, que concentrou votos de homens brancos, em geral, e de homens e mulheres brancas do interior. Trump sai das eleições como um ator importante para o partido e para a política nacional, com 70 milhões de votos, após meses de desgaste em função de sua forma controversa de enfrentar a pandemia, do desemprego, dos conflitos raciais do país, das inúmeras acusações de malfeitos de ordem moral e legal e da violência política eleitoral das últimas semanas. Esse contexto de ebulição social tende a continuar e não se sabe que efeitos terá sobre o sistema político.
O desafio de Biden será o de formar uma coalizão que, ao mesmo tempo, inclua republicanos moderados e não deixe de fora os movimentos que contribuíram de forma decisiva para sua eleição. Seu discurso de vitória acena para quase metade dos eleitores e para uma parcela importante do partido oponente, que tem resistido à postura confrontacionista dos trumpistas, no intuito de minimizar riscos e tornar menos árduos os desafios que serão enfrentados na condução de sua gestão. O confronto com os Republicanos tende a ser especialmente grande nas agendas sociais referentes à imigração, racismo e saúde pública.
Observar a posição do partido Republicano no apoio às investidas de Trump contra o processo democrático e o sistema eleitoral será fundamental para avaliar, com mais exatidão, os efeitos da atual polarização sobre a política nacional nos próximos anos. Por ora, os líderes republicanos se abstêm de referendar ou condenar as declarações do presidente em exercício. A situação é delicada, pois apesar de controverso mesmo em seu próprio partido, o legado de Trump é inegável: a mobilização eleitoral que ele promoveu nos últimos dois pleitos foi decisiva para a vitória de muitos candidatos ao Senado e à câmara baixa, que viam seus mandatos ameaçados por lideranças democratas mesmo em estados republicanos como Carolina do Sul, Carolina do Norte, Arkansas e Kentucky. Assim, se a rejeição a Donald Trump em grandes centros urbanos foi decisiva para sua derrota, o presidente foi decisivo para consolidar a base republicana na população branca do interior americano.
Trump conseguiu também o feito de virar a Suprema Corte para o lado dos conservadores, conquistando a maioria no tribunal com a nomeação da juíza ultraconservadora Amy Coney Barrett, para substituir a progressista Ruth Bader Ginsburg, morta recentemente. Essa sua terceira nomeação, após Neil Gorsuch em 2017 e Brett Kavanaugh em 2018, foi confirmada pelo Senado em tempo recorde. Dessa maneira, mesmo se o milionário novaiorquino sair da cena política, o legado conversador de sua passagem pela Casa Branca vai ser sentido ainda por muitos anos e será sentido em temas importantes para o partido Democrata.
O crescimento de partidos e movimentos conservadores e/ou de extrema direita, com consequente aumento da polarização política, tem sido uma tônica em diversos países, inclusive no Brasil. Por aqui, as eleições de 2014, com questionamento público e alegação de fraude eleitoral por parte do partido derrotado (PSDB), anunciaram a instabilidade institucional que estava por vir e que resultou no impeachment de Dilma Rousseff (PT), assim como na subsequente eleição de Jair Bolsonaro (hoje sem partido). Em 2018, apesar de vitorioso, Bolsonaro também fez menção a uma suposta fragilidade do processo eleitoral brasileiro, reiterando esse discurso em diferentes momentos e com diferentes propósitos. O descrédito conferido a instituições democráticas e o ataque às mídias tradicionais têm sido marca de um novo conservadorismo que ganha respaldo no voto popular aqui e acolá.
Para o Brasil, a vitória de Biden tem importância simbólica, política e econômica. No campo simbólico, perdem a ala ideológica do governo e parte de seu eleitorado, que foi às ruas, inclusive, prestar apoio a Trump. No campo das relações externas, aumenta o grau de isolamento do Brasil mundo a fora, a começar pela América Latina. Trump era um aliado simbólico para movimentação política do Brasil na região. Já não estão em cena Mauricio Macri, na Argentina (que foi derrotado pela dupla peronista Alberto Fernandéz e Cristina Kirchner, à esquerda), Juan Guaidó, na Venezuela (que fracassou na tentativa de derrubar o presidente Nicolás Maduro), e na Bolívia o MAS, de Evo Morales, obteve vitória acachapante nas eleições para o executivo e legislativo nacional. Além disso, Piñera, no Chile, tem feito inúmeras concessões que reduzem as possibilidades de um fortalecimento da direita. Sem Trump na presidência dos EUA, o Brasil, que já vinha perdendo espaço político na região devido à rejeição do multilateralismo internacional adotada por Bolsonaro, se apequena ainda mais.
Fora da América Latina, a vitória de Biden e o reforço do multilateralismo aumentam o risco de impugnação do acordo Mercosul-União Europeia (já hoje ameaçado por questões ambientais) e pressiona o Brasil a reforçar suas metas para o Acordo de Paris, o que precisa acontecer até dezembro deste ano. Sem aliados de peso no cenário internacional, será preciso algum aceno do Brasil para que os danos políticos hoje já experimentados não sejam aprofundados. No que se refere à economia, como muitos já têm dito, a derrota do Trump tende a ter pouco efeito sobre os fluxos comerciais entre os dois países, embora paire dúvida sobre o quanto as divergências ambientais podem impactar o agronegócio. As relações entre Brasil e China, por sua vez, podem sofrer melhora, se, obviamente, for aproveitada pelo governo brasileiro a oportunidade de desideologizar sua postura frente ao país.
Diversos países já se adiantaram no reconhecimento da vitória de Biden, dentre eles Reino Unido, França, Alemanha, Noruega, Austrália, Canadá e Arábia Saudita. Até mesmo o ultra-conservador Benjamin Netanyahu, com quem Trump e Bolsonaro mantêm relações de aliança, já parabenizou o presidente eleito. O governo brasileiro ainda não se pronunciou. Mais uma vez, na gestão de Bolsonaro, o legislativo assume o protagonismo, com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, reconhecendo publicamente a vitória de Biden e reiterando interesse em reforçar os laços entre as duas nações.
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