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TEMPERATURA POLÍTICA NA AMÉRICA LATINA E RUMOS DO MERCOSUL

Atualizado: 16 de abr. de 2020


Turbulências recentes no cone sul: desigualdade e democracia em questão


Protestos, repressão, violência e mortes conturbaram o cenário político de outubro no cone sul. No Equador e no Chile, centenas de milhares de manifestantes foram às ruas protestar contra a deterioração das condições de vida da população, após anúncio do fim do subsídio ao combustível, no primeiro, e do aumento de 30 pesos no preço da tarifa de metrô (cerca de R$ 0,17), no segundo. Na Bolívia, que foi às urnas em 20 de outubro para eleger um novo presidente, movimentos contra o governo também foram observados ao longo do mês, a despeito dos 12 anos consecutivos de crescimento econômico do país. Nas primeiras semanas, Evo Morales já havia enfrentado protestos em virtude dos incêndios florestais. Após a eleição presidencial, milhares ocuparam capital e interior em função de denúncia, por parte da oposição, de suposta fraude na confirmação da vitória de Evo.


Nos três países, que, em dado momento, chegaram a decretar estado de emergência, os protestos não cessaram imediatamente após o anúncio de medidas teoricamente capazes de minimizar os conflitos. Lenín Moreno, do Equador, revogou o decreto que aumentou a gasolina sem qualquer efeito imediato. Sebastián Piñera, do Chile, cancelou a elevação da tarifa, tendo convocado nova turma de ministros, embora a iniciativa, igualmente, tenha sido insuficiente para conter as manifestações. Os movimentos deslocaram-se de reivindicações específicas para denúncia contra políticas amplas, que aprofundaram a pobreza e a desigualdade tanto no Chile quanto no Equador. Na Bolívia, Evo concordou em auditar a eleição em parceria com a OEA (Organização dos Estados Americanos), mas a oposição tem se recusado a participar de um processo que considera unilateralmente construído e já há setores clamando por intervenção militar, enquanto parte da população continua nas ruas reforçando um movimento que questiona a própria legalidade da quarta candidatura do atual presidente.


As reações do governo brasileiro


Diante desse quadro, o governo brasileiro prepara-se para enfrentar possíveis manifestações - o Chile, afinal, tem sido um dos nortes da equipe econômica de Jair Bolsonaro na defesa das reformas econômicas propostas, incluindo a da previdência, recentemente aprovada. Em resposta à conjuntura latino-americana, Bolsonaro não reconhece os resultados da eleição boliviana, identifica os protestos do Chile e do Equador como atos terroristas de esquerda, reforça sua posição político-ideológica frente aos países vizinhos diante das eleições na Argentina e conclama as Forças Armadas à manutenção da ordem em caso de eventual necessidade. O cenário interno, contudo, é de adversidade. Apesar de o risco-país ter atingido o menor nível da série histórica desde 2013, em aceno favorável aos investimentos externos, são muitas as dificuldades políticas enfrentadas internamente pelo governo. A crise no PSL, partido de Bolsonaro, é revés adicional na já fragilizada relação com o Congresso. A citação do nome do presidente no caso da vereadora Marielle Franco, morta em 2018, ainda que refutada pelo Ministério Público do Rio de Janeiro, cria tensões junto a parlamentares e opinião pública, com impacto no andamento da agenda governamental. Nesse cenário, os protestos na América Latina podem representar fator contextual importante na indução de movimentos insurgentes contra o presidente; por ora, no entanto, não há indícios de mobilização significativa nessa direção.


Eleições na Argentina e no Uruguai sob os olhos do Brasil


Além da Bolívia, Argentina e Uruguai também realizaram eleições presidenciais no último mês. A Argentina enfrenta economia em declínio, desvalorização da moeda, alta taxa de desemprego, aumento da pobreza e inflação, nos últimos 12 meses, de cerca de 55%, enquanto o Uruguai mantém taxa positiva de crescimento do PIB desde 2003, apesar do recente indicativo de desaceleração. Nos dois casos, a situação da economia, guardadas as enormes diferenças entre um país e outro, impõe desafios às coalizões governistas. A desaceleração da economia uruguaia ameaça pela primeira vez, em 15 anos, a coalizão de esquerda que governa o país. Daniel Martinez (Frente Ampla) disputará segundo turno com Luis Lacalle Pou (Partido Nacional), que tem se mobilizado em torno da construção de uma aliança de centro-direita de cunho conservadora. Bolsonaro expressou apoio público à Lacalle, que, em resposta, teceu críticas ao presidente brasileiro.


Na Argentina, por sua vez, Alberto Fernández e Cristina Kirchner venceram contra Mauricio Macri, que tinha o apoio manifesto de Bolsonaro. Diferentemente da postura adotada com relação à Bolívia, o Brasil reconheceu a lisura do pleito eleitoral, embora Bolsonaro tenha recusado-se a cumprimentar o presidente eleito. O apoio público de Fernández à libertação do ex-presidente Lula é uma das justificativas, mas não a única. A derrota de Macri frustra as expectativas de Paulo Guedes, Ministro da Economia, de reestruturar parcerias na América Latina, por meio da redefinição de rumos para o Mercosul. Por essa razão, inclusive, Bolsonaro chegou a mencionar tanto a possibilidade de retirada do Brasil do bloco quanto o desejo de expulsar a Argentina, em caso de eventual desacordo estrutural. A equipe econômica do governo já se apressou em afastar ambas alternativas, mas a declaração do presidente cumpre a função de manter a Argentina pressionada.


Efeitos das eleições sobre formação e ambiência do Mercosul


Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai são países-membros do Mercosul. A Venezuela está suspensa desde 2016 e a Bolívia é membro associado em processo de adesão. Sua entrada foi ratificada pelos parlamentos dos países integrantes, exceto o Brasil. O crivo do congresso brasileiro depende da aprovação do projeto de decreto legislativo (PDC) 745/2017, que, apesar de contar com o apoio explícito do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, foi retirado da pauta do plenário, à pedido do governo, em função das controvérsias em torno da candidatura de Evo. As tensões geradas pelo resultado eleitoral acrescentam incerteza ao processo, embora não haja sinalização formal de mudança de postura governamental em favor da rejeição. Além disso, a eleição de Fernández, na Argentina, e a possível vitória de Martinez, no Uruguai, candidatos também ideologicamente pouco alinhados ao governo brasileiro, têm potencial para acirrar conflitos. Mesmo uma vitória de Lacalle, no Uruguai, mais inclinado a políticas econômicas de cunho liberal, não se traduz em alinhamento automático com a postura de Bolsonaro à frente do Mercosul. O Brasil tem sido claro no desejo de flexibilizar as regras do bloco de modo que elas não sejam impeditivas para o fechamento de acordos bilaterais, especialmente com os EUA. Há risco, no entanto, de que medidas protecionistas voltem ao centro do debate, especialmente pelas mãos da Argentina. Nesse sentido, não está clara, inclusive, a posição que o país assumirá frente ao acordo firmado com a União Europeia, pendente de ratificação. Fernández manifesta intenção de revisá-lo, apesar de a UE ter dito não ter mais condições de avançar.


Planos do Brasil para o bloco


A proposta do Brasil para o Mercosul é de simplificação/desburocratização de relações comerciais e institucionais dentro e fora do bloco. Desde a campanha, Bolsonaro e sua equipe econômica manifestam desejo de intensificar relações comerciais bilaterais e multiplicar parceiros fora do eixo de cooperação sul-sul priorizado em governos anteriores. Há previsão de negociações de livre-comércio com Estados Unidos, Canadá, México, Japão, Vietnã, Coreia do Sul e Singapura, segundo o secretário de comércio exterior, Lucas Ferraz. Atualmente na presidência pro tempore do Mercosul, o Brasil tem como prioridade a redução de cerca de 50% da Tarifa Externa Comum (TEC) - taxa cobrada para importação de bens de países terceiros, criada com a intenção de proteger a indústria dos países-membros. Embora a proposta tenha contado até aqui com apoio relativo da Argentina, do Uruguai e do Paraguai, há expectativa de que a eleição de Fernández arrefeça o debate. Dentro do próprio Brasil, há divergências importantes com relação à medida, que, diante da posição da Argentina, podem vir a ganhar corpo. A Confederação Nacional da Indústria (CNI) teme que um corte abrupto da TEC reduza o PIB de certos setores industriais, resultando em desaceleração econômica, aumento do desemprego e redução do poder de barganha para derrubada de barreiras externas ao agronegócio. A abertura comercial é pauta do empresariado brasileiro, desde que seja ela controlada.


Tensões com a Argentina: riscos e perspectivas de sobrevivência do Mercosul


As tensões recentes entre Brasil e Argentina impõem riscos importantes ao Mercosul. Um deles, bastante improvável, a despeito dos comentários de Bolsonaro, é o de efetiva ruptura: a) cerca de 40% das exportações de bens manufaturados no Brasil são destinados a países latino-americanos e caribenhos (CEPAL, 2018), com destaque para países do bloco; b) o saldo médio anual da balança comercial do Brasil nas operações com o Mercosul girou em torno de U$ 8,3 bilhões nos últimos 3 anos (MDIC), tendo sido a Argentina o principal destino das exportações e também o país de onde mais se importou, 72% e 81%, respectivamente (MDIC, 2018); c) 54% dos municípios exportadores brasileiros exportam, hoje, para países membros do Mercosul (CNI). Além disso, a extinção do acordo pode dificultar a relação do Brasil com parceiros extra-bloco, especialmente a União Europeia, que, historicamente, manifesta desinteresse em firmar acordos com países sul-americanos individualmente.


O segundo risco, este sim com probabilidade um pouco maior de ocorrência, é o de transformação da natureza do acordo. O Mercosul é, hoje, uma união aduaneira - passo anterior à instituição de um mercado comum. Menciona-se transformá-lo em acordo de livre-comércio - o que implicaria na eliminação total da TEC - especialmente se não arrefecidas as tensões atuais entre Brasil e Argentina. Tal mudança representa retrocesso do ponto de vista da ampla integração regional, mas tende a ser encarada como avanço pelo governo brasileiro, empenhado pela abertura do mercado nacional. Seria preciso, no entanto, que a economia apresentasse sinais de recuperação suficientes para que a indústria brasileira se dispusesse a sustentar/suportar a nova aposta.


Por fim, há possibilidade de flexibilização marginal de algumas regras, capazes de manter o bloco de pé mesmo sem alteração de sua natureza, a despeito dos conflitos entre Fernández e Bolsonaro. Neste cenário, no entanto, o fortalecimento da integração regional permanece como resultado pouco provável no curto prazo. Ao contrário, a tendência será de conter avanços. O desfecho de um Mercosul sobrevivente, mas esvaecido, estará, ao que tudo indica, perfeitamente alinhado às estratégias comerciais do Brasil.

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