A pandemia de Covid-19 ameaça o calendário eleitoral de 2020. Diversos países têm postergado a realização de eleições locais e nacionais em consonância com as medidas restritivas de deslocamento e aglomeração, necessárias à restrição da propagação do coronavírus em escala global.
No Brasil, o debate sobre as eleições municipais, previstas para outubro, permanece pouco aquecido, embora não faltem razões para que o assunto esteja no horizonte imediato de discussões no Congresso. As convenções para escolha partidária dos candidatos a prefeito, vice-prefeito e vereador acontecem somente entre os meses de julho e agosto, mas o calendário eleitoral, com diversas outras etapas anteriores, segue em vigor, sem qualquer alteração.
No mês de abril, por exemplo, encerraram-se alguns prazos importantes: aprovação, pelo TSE, de registro de partidos aptos a disputar a eleição; desincompatibilização de secretários municipais, dirigentes de autarquias, fundações e/ou empresas públicas interessados em concorrer a cargos de vereador; e mudança justificada de partido para vereadores que buscam reeleição ou cargos de prefeito e vice-prefeito. Neste mês de maio, precisamente a partir do dia 15, pré-candidatos aos cargos eletivos estarão aptos a iniciar processo de arrecadação prévia de recursos via modalidade de financiamento coletivo. Há, portanto, uma série de escolhas individuais e coletivas em curso para o pleito de outubro, apesar de mantido o cenário de incerteza com relação à realização das eleições.
No intuito de contribuir para o debate, este artigo busca sistematizar e lançar luz sobre o contexto atual e as estratégias de solução do impasse em torno das eleições.
Contexto internacional e regional
De acordo com informações da International Foundation for Electoral Systems, quase 90 eleições foram adiadas em 53 países como decorrência da pandemia provocada pelo coronavírus. Em mais de 50% delas não há nova definição de data para realização do pleito. Em apenas 4 países o adiamento foi proposto por 1 ano - Austrália, Canadá, Letônia e Inglaterra. Nos demais casos, as eleições foram postergadas majoritariamente por até 3 meses. Vale ressaltar que em praticamente todas as situações de adiamento, as eleições estavam previstas para serem realizadas entre março e maio, pico da curva epidêmica em grande parte desses países.
Entre os nossos vizinhos, a Argentina adiou suas eleições municipais de março para setembro; na Bolívia, que vive hoje situação conturbada, com um governo de transição, a eleição presidencial de março foi postergada sem que nova data tenha sido definida; no Chile e na Colômbia, respectivamente, houve adiamento do referendo constitucional e das eleições municipais, ambos previstos para o mês de abril. Já no Brasil, foi desmarcada a eleição suplementar (prevista para abril) para substituição da senadora matogrossense, Selma Arruda (PODE-PR), cujo mandato foi cassado por abuso de poder econômico. As eleições municipais de outubro ainda são objeto de pouco debate público no país.
Contexto nacional: eleições saem de cena em meio a crises de diversas ordens
A crise sanitária nacional, com esgotamento do sistema público de saúde, é apenas uma das crises enfrentadas pelos brasileiros de meados de março até então. A expectativa de recessão econômica no pós-imediato à redução da curva epidêmica brasileira e os cálculos políticos que daí decorrem têm aprofundado divisões dentro do Planalto, entre o Planalto e o Congresso, e entre o Planalto e o STF, com consequências potencialmente graves para a estabilidade do jogo político no Brasil. Enquanto o país caminha rumo ao pico da pandemia, foram substituídos os ministros da Saúde e da Justiça; houve mudança no comando da Polícia Federal, embargada pelo STF mediante acusações de cometimento de crime de responsabilidade por parte do presidente; divergência entre União e Estados no tocante à instituição de regras de distanciamento social; desrespeito presidencial às orientações da OMS; participação do presidente em manifestações favoráveis ao fechamento do Congresso e do STF; e apresentação de dezenas de pedidos de impeachment. A baixa repercussão do debate sobre as eleições municipais nas duas casas legislativas e na mídia é, de certa forma, reflexo desse cenário.
No final de março, o deputado federal Aécio Neves (PSDB-MG) verbalizou publicamente sua intenção de buscar apoio a uma proposta de emenda constitucional (PEC) que garantisse unificação das eleições em 2022 e mandatos de 5 anos sem possibilidade de reeleição a partir de 2026. O Deputado Paulo Guedes (PT-MG) manifestou interesse em apresentar PEC sobre adiamento das eleições para dezembro. O tema ganhou certa proeminência midiática momentânea, mas, como as PECs não foram apresentadas, o debate arrefeceu. De um modo geral, no entanto, grande parte dos parlamentares que têm vindo a público manifestar sua posição sobre o tema, incluindo o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, é favorável a um eventual adiamento, desde que sem unificação geral das eleições e sem qualquer prorrogação de mandato. Ministros do STF e do TSE apenas recentemente acenaram, de forma individual, na mesma direção, sem que tenha havido posicionamento coletivo formal de ambas instituições.
Mídias sociais não tratam do assunto: o exemplo do twitter
Na plataforma Twitter, que dentre as mídias sociais é aquela que mais reverbera os eventos políticos, o assunto foi objeto de menos de 700 tweets entre os dias 30 de abril e 06 de maio. A rede do twitter no período tem baixa densidade, refletindo a pouco circulação do tema, com algumas comunidades fortemente conectadas. O senador Álvaro Dias (PODE-PR) e a juíza criminal, Renata Gil, presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros, foram as figuras públicas mais retweetadas, sendo responsáveis, portanto, por boa parte do conteúdo veiculado sobre o tema, que, nesse caso, se restringiu a fornecer informações sobre algumas etapas do calendário eleitoral.
Rede de RTweets sobre eleições 2020
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Câmara dos Deputados trata das eleições, mas muito pouco da data de votação
Há 43 ações legislativas sobre as eleições de 2020 registradas, na Câmara, desde o começo do ano, consideradas as proposições legislativas de tipo mais relevante, além de indicações e requerimentos de informação. Desse total, 80% têm apresentação posterior à primeira quinzena de maio, sendo coincidentes com o período de edição de medidas mais restritivas de prevenção e combate ao coronavírus, embora poucas sejam as propostas que efetivamente alteram a data das eleições. Os partidos mais propositores foram PSL e PDT.
Proposições da Câmara, em 2020, por autoria e data de apresentação.
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A maior parte das atividades legislativas aqui analisadas trata da destinação dos recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEEC) e/ou do Fundo Partidário (FP) para o combate à pandemia, cerca de 42%. Ou seja, em caso de manutenção das eleições em outubro, e de eventual aprovação de tais proposições, o financiamento dos candidatos tende a ser significativamente menor. Até então, contudo, não parece haver concordância ampla dos parlamentares em torno da redução orçamentária eleitoral, especialmente por ser este o ano que marca o fim das coligações para cargos eleitos via sistema proporcional.
Proposições da Câmara, em 2020, por sub-temas relativos às eleições municipais
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O gráfico seguinte de rede relaciona partidos autores e temas pertinentes à eleição, objeto de suas proposições. Há apenas 6 ações legislativas em 2020 que propõem alteração da data das eleições, além de dois requerimentos de informação aos ministérios da Justiça e da Saúde. As propostas de unificação das eleições são de autoria do PSL e do MDB. As de adiamento do PL, PP e PDT.
Rede de correspondência entre sub-temas relativos às eleições municipais e partidos autores dessas proposições em 2020
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Nenhuma das 43 proposições acima mencionadas foi à votação em plenário. Vale lembrar que a decisão pela mudança na data é prerrogativa do Legislativo, e que eventual unificação das eleições em 2022 é objeto próprio e exclusivo de emenda constitucional, com quorum qualificado e votação em dois turnos, não sendo passível de implementação via projeto de lei ordinária ou ato unilateral de outros poderes.
É importante ressaltar ainda que a unificação das eleições é demanda antiga de alguns setores e grupos sociais, tendo sido imposta pelos militares nas eleições de 1982. Há 7 propostas de emenda constitucional com este teor, que ainda tramitam conjuntamente na Câmara, apresentadas anteriormente à crise de Covid-19, das quais 4 no ano de 2019. Os autores dessas PECs são do PTB, PDT e do MDB.
Propostas de unificação anteriores a 2020
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Perspectivas e riscos
A julgar pelos números impactantes da Covid-19 no Brasil, é provável que haja adiamento das eleições, ainda que sob risco de que a discussão a respeito da alteração de data seja conturbada por propostas de unificação dos pleitos. A última, no entanto, em nada se relacionada com a primeira. Adiar as eleições, de modo que sejam resguardados direitos individuais e coletivos relativos à vida e ao processo eleitoral, significa postergar a data de votação e, por conseguinte, alguns marcos do calendário eleitoral, até que a curva de transmissão do vírus flexibilize as medidas restritivas em vigor e/ou haja alternativas seguras de realização da votação. Unificar os pleitos implica prorrogar mandatos em curso. Os defensores da ideia enfatizam a redução dos custos em anos eleitorais, mas há inúmeros riscos que devem ser considerados, alguns dos quais listados a seguir.
Em primeiro lugar, em cenário de conjugação de eleições locais e nacionais, as locais necessariamente perdem proeminência. O debate se nacionaliza, com custos elevados para discussão dos problemas municipais. Em segundo, eleições unificadas impõem custo informacional significativamente maior para os eleitores, o que impacta negativamente a qualidade do voto. Além disso, a decisão de eventual unificação dos pleitos, com prorrogação dos mandatos atuais, fere substantivamente o procedimento democrático, na medida em que estende o mandato representativo concedido pelo voto pelo prazo de 4 anos. Essa é a razão, inclusive, pela qual quaisquer alterações na legislação eleitoral só podem valer para o ano seguinte. A economia de recursos, vale ressaltar, não justifica o comprometimento do rito democrático e não é condição que só se possa alcançar mediante a unificação.
A Confederação Nacional dos Municípios tem defendido eleições unificadas, alteração que hoje beneficia prefeitos e vereadores em exercício, além de seus respectivos partidos. Por outro lado, parlamentares interessados em concorrer a postos-chave nos municípios constituirão forte grupo que certamente agirá contra a unificação, cujo resultado será, dentre outros, que o deputado candidato perca a chance de administrar suas escolhas de carreira, sem perda do mandato parlamentar. A taxa de deputados federais que concorrem a prefeituras no meio de seus mandatos é historicamente de 15 a 20%.
A despeito da quase ausência de debate a respeito do tema, a aposta hoje é de que, se não mantidas as eleições em outubro, serão elas realizadas até início de 2021, com o mínimo de interferência sobre as regras vigentes, possibilidade de extensão dos dias de votação e/ou determinação de escalas de comparecimento às urnas por faixa etária. As últimas sugestões foram feitas, nos últimos dias, pelo ministro Luís Roberto Barroso, que está em vias de assumir a presidência do Tribunal Superior Eleitoral. O TSE não tem a prerrogativa de fazer a mudança, mas assume papel importante na liderança das discussões.
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