A promessa de campanha: fim do presidencialismo de coalizão
Eleito com 55,13% dos votos, Bolsonaro chegou ao Planalto com a promessa de uma "nova política", em resposta à descrença de muitos acerca da virtuosidade de nossas instituições. O elemento central dessa "nova política" era livrar o país do presidencialismo de coalizão, sistema que, ao menos desde 1988, caracteriza as relações entre Executivo e Legislativo no Brasil. O "presidencialismo de coalizão" nada mais é que a montagem de alianças que permitem ao presidente ter apoio legislativo para governar, em ambiente de alta fragmentação partidária, no qual o presidente assume poder central em virtude dos poderes constitucionalmente a ele atribuídos. Hoje, por exemplo, há 24 partidos políticos diferentes representados no parlamento. Embora o presidente disponha de recursos políticos e legislativos importantes, e a despeito do fato de que há problemas na forma pela qual o presidencialismo de coalizão tem operado em determinados períodos da República, o apoio legislativo tem sido condição básica de êxito dos governos desde o restabelecimento da democracia. Não é possível, e tampouco razoável, prescindir do Congresso em sistemas democráticos. Pode-se prescindir do presidencialismo de coalizão enquanto fórmula de governança, mas não propriamente da formação de alianças. Bolsonaro, no entanto, manteve a aposta de governar sem estruturar grupo de apoio que garantisse avanço sistemático e consistente da agenda governamental no legislativo. Mais do que isso, o presidente se esforça na tarefa de questionar a eficiência e a própria funcionalidade do parlamento, em movimento de rejeição ao Congresso. As sucessivas crises com a Câmara dos Deputados são resultado dessa suposta "nova política".
O conflito entre Executivo e Legislativo em números
Os atritos entre Planalto e Congresso, além de ocuparem quase que diariamente as páginas dos jornais, estão evidenciados em números. Em 2019, dentre as 42 medidas provisórias (MPVs) editadas pelo Governo, somente 24% foram à votação no mesmo ano. Essa é a menor taxa de sucesso de MPVs em quase 20 anos. Os Projetos de Decreto Legislativo (PDLs), cuja competência principal é sustar atos do Executivo, cresceram significativamente na Câmara em 2019. No primeiro mandato de Lula, 30 PDLs foram apresentados. No segundo de Dilma, já iniciado com crise instalada na Câmara, esse número cresceu para 130. Com Bolsonaro, esse número subiu para mais de 340. Isso não significa que o presidente não aprova projetos importantes de sua agenda, alguns dos quais inclusive de conteúdo árido e polêmico. Ao contrário, o presidente fechou o ano com uma alta taxa de governismo, de mais de 70%, e segue 2020 em ritmo semelhante. O que parece lhe ter garantido essa façanha, no entanto, foi a coincidência entre a agenda econômica do Planalto e a do Congresso, a fidelidade do PSL (que hoje já não constitui base de apoio inequívoca do governo) e o apoio (embora não sistemático e não muito coeso) dos partidos do chamado Centrão às propostas governamentais.
Primeiro trimestre de 2020: manutenção de estratégia plebiscitária e disputa pelo orçamento
Conflitos em torno de projetos específicos, a exemplo da reforma da previdência e do pacote anti-crime, ambos aprovados em 2019, e com perdas consideráveis para o governo, marcaram o primeiro ano de Bolsonaro, dentro e fora do Congresso. Dentro, porque é esta a arena primordial em que conflitos dessa natureza se manifestam e se resolvem; fora, porque, diante da falta de articulação política no Congresso, o recurso à mobilização de seus seguidores, principalmente nos meios digitais, tem sido a estratégia dominante do Planalto na condução de sua agenda legislativa. Sobre isso, valem algumas considerações: 1) a sociedade civil, organizada ou não, é parte extremamente importante no processo de construção das políticas públicas, o que significa que sua mobilização é um ganho para a democracia; 2) não há garantia, no entanto, de que a pressão popular produza resultados unidirecionais dentro do parlamento - essa é inclusive uma das vantagens do sistema proporcional que elege nossos deputados, ele garante diversidade e protege minorias; 3) a mobilização da sociedade tem sido usada como recurso da presidência contra a legitimidade de poderes constituídos mais do que contra suas posições acerca de políticas pontuais, o que fere, ao invés de aprimorar, a democracia em si.
O primeiro trimestre de 2020 não indica haver estratégia governamental de mudança desse cenário. A tônica do conflito nesses primeiros 3 meses de 2020 girou em torno do controle da Lei de Diretrizes Orçamentárias. Ao tornar compulsória a execução de emendas propostas pelo relator-geral do orçamento, o parlamento transferiu a gestão de R$ 30 bilhões do Executivo para o Legislativo. O presidente vetou o trecho proposto e o Congresso, em resposta, ameaçou derrubar o veto, ainda que não estivesse claro se havia maioria sólida para tanto. A despeito dessa avaliação, manifestações de rua à favor do governo e contra os poderes legislativo e judiciário foram convocadas para o dia 15 de março por agremiações posicionadas à direita do espectro político, bem como pelo próprio presidente. O veto ao trecho da LDO foi mantido em 04 de março, sob o acordo de que o assunto seria tratado por projetos específicos que aumentariam, em menor medida, o controle orçamentário dos parlamentares, resguardado um maior volume de verbas discricionárias no orçamento. Após adoção de medidas nacionais restritivas de contenção do coronavírus, o presidente timidamente desincentivou as manifestações, mas acabou por se fazer presente em um dos atos realizados em Brasília. Os projetos acordados para a regulação das emendas impositivas (PLN 02/2020, PLN 03/2020 e PLN 04/2020) estão, por ora, na pauta de votação da Câmara desta semana.
Parlamentarismo branco: é disso que se trata?
O episódio recente em torno do orçamento trouxe novamente à cena uma retórica relativamente consolidada em 2019. Com o pretenso fim do presidencialismo de coalizão, que, por conseguinte, resultaria na eliminação dos altos custos para sua operação - inclusive envolvendo desvios de verba e enriquecimento ilícito, há uma reação institucional do Congresso a que não raro se intitula de "parlamentarismo branco". O termo tem sido usado indiscriminadamente pelo governo, por parlamentares, jornalistas e cidadãos comuns para expressar o crescente protagonismo do Congresso Nacional, mas não está livre de imprecisões. A avaliação dos próprios integrantes do governo de que a ação incisiva e relativamente mais independente do legislativo fere os preceitos do regime presidencialista não resiste à análise.
É o presidencialismo de coalizão, na verdade, e não o seu desarranjo, que guarda semelhanças com o parlamentarismo, na medida em que ele aproxima o legislativo do executivo. O que está em curso é praticamente o oposto do que se ventila. A inexistência de coalizão majoritária organizada e alinhada ao Planalto aprofunda as características do sistema presidencial, com independência entre os poderes, e, sob certo ponto de vista, aproxima o sistema brasileiro do americano, em que o presidente tem papel legislativo estritamente reativo.
A relação atual entre o Executivo e a Câmara no Brasil é, na verdade, típica de governos presidencialistas em que o partido do presidente (ou o grupo de apoio com o qual ele conta) está distante da preferência majoritária, havendo, portanto, maior incentivo ao veto presidencial, mas também menor eficácia na sua aplicação. É importante pontuar que, diferente do sistema americano, o Congresso brasileiro é formado por uma miríade de partidos, nenhum perto de obter a maioria dos assentos - cenário atualmente agravado pelo fato de que o presidente não está vinculado a partido formalmente constituído. Isso impõe dificuldade adicional à relação entre os dois poderes que, de parlamentarista, na verdade, quase nada tem.
Possíveis efeitos do coronavírus sobre a relação entre os poderes
A pandemia do coronavírus tem potencial para agravar a crise com o Congresso. Se por um lado, governo e legislativo esmeram-se, juntos, em propor ações que levem à redução do índice de transmissibilidade do vírus, por outro, essas mesmas ações aumentam a tensão entre os poderes, na medida em que produzem impacto sobre o orçamento e ameaçam a agenda fiscalista do ministro Paulo Guedes. Já há rumores no governo a respeito de possível suspensão do acordo pela aprovação de projetos que regulam o orçamento impositivo. De um lado, o Congresso tende a pressionar Bolsonaro a manter o acordado; de outro, o governo tende a pressionar o Congresso a rejeitar esse projetos e a incluir na pauta de votação propostas governamentais que não contam como apoio majoritário do Casa e tampouco da população, como a que autoriza a venda de estatais e, em particular, da Eletrobras.
Nada indica que haverá recuo na implementação da estratégia governamental de contar com coalizões legislativas ad hoc e instáveis, em ambiente de pouca articulação interinstitucional. Além disso, o coronavírus tende a fortalecer a retórica presidencial de que, se não pressionado constantemente pela população, via manifestação social de apoio à agenda do governo, o Congresso torna-se um empecilho à tarefa presidencial de governar e fazer crescer a economia. O prolongamento desse quadro, somado ao fato de que os parlamentares já iniciaram o ano preparando-se para as disputas municipais, tende a aumentar o protagonismo legislativo e isso, por sua vez, a retroalimentar o cenário de tensão. Nos próximos meses, uma relação de equilíbrio e cooperação entre o Executivo e o Legislativo certamente exigirá maior esforço político por parte da equipe presidencial. O cenário, contudo, é também de maior imprevisibilidade, guardada a única certeza de que parlamentarismo à vista não há, tenha ele a cor que se queira dar.
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